Terrível era o destino dos navegantes que encontrassem
sereias em seu caminho. Ao ouvir seu irresistível canto, embalados por sua
beleza, eles se atiravam enlouquecidos ao mar, onde se afogavam. Por isso, homens
do mar experientes as evitavam. Mas o astuto Ulisses, herói da Odisséia, era um
homem de interesses insaciáveis e, ao voltar da guerra de Tróia, quis correr o
risco de conhecer o que de tão perigoso havia nesse (en)canto. Ao invés de
desviar delas, resolveu conhecê-las. Seu plano era simples, foi firmemente
amarrado ao mastro de seu navio, enquanto sua tripulação continuava remando,
com os olhos fixos no chão e ouvidos tapados com cera, protegidos assim dos
sons e imagens das sereias. A ideia seria que, durante a passagem do barco pelo
território delas, apenas Ulisses, amarrado e impotente, pudesse contemplar seus
feitiços e ter uma ideia de sua força. E assim foi. Homero nos relata que ao
ouvir os cantos das sereias, Ulisses arrependido de seu plano, mudou de ideia,
e quis se soltar. Não conseguindo, ficou furioso, se descontrolou, gritava,
berrava e implorava para sua tripulação (que não o podia ouvir) que o
libertasse das cordas, pois ele preferia se atirar desesperadamente ao mar, e
ficar ali com aquelas sensações maravilhosas, até então desconhecidas e
inimagináveis, mesmo que isso lhe custasse a vida. E era verdade, se tivesse
sido solto ele se atiraria ao mar por vontade própria, para morrer com as
sereias. Mas o barco passou, e Ulisses se viu livre do encanto para seguir não
só a viagem, mas sua vida.
Toda a Odisséia, que narra a fantástica viagem de Ulisses de
volta para Ítaca, após a guerra de Tróia, em meio a perigos e criaturas
fantásticas, nada mais é do que a história de um homem tentando voltar para o aconchego
do lar e o convívio da família, após um cansativo dia de trabalho. Em nossa
jornada diária, nos deparamos com obstáculos e dificuldades, que às vezes
parecem monstruosas e intransponíveis, como os Cíclopes e monstros da Odisséia.
A imagem do canto das sereias é ótima para ilustrar um
problema de abordagem delicada. Falar sobre “drogas” pode ser difícil, primeiro
porque é preciso discuti-las individualmente, cada uma traz questões
peculiares. Os problemas decorrentes do uso de maconha são muito diferentes
daqueles da cocaína, e assim por diante. Grande erro é colocá-las no mesmo “pacote”
em uma discussão, o que muitos medrosos e desinformados fazem, e é isso que leva
os argumentos dos idiotas que marcham pela maconha parecerem sensatos, misturar
alhos com bugalhos, desviar a atenção da verdade que importa.
Nem todos sabem na prática, e não em teoria, o quanto a
cocaína pode ser deliciosa; e poucas pessoas conseguem falar abertamente o que
pensam sobre isso, sem mentir ou se expor. A cocaína pode ser tão extasiante quanto
o canto das sereias, e fazer com que uma pessoa, que não esteja fortemente
amarrada ao mastro, perca o rumo e não consiga voltar para casa. Com a maconha
os problemas são outros. Quem usa maconha não está nem aí se vai ficar amarrado
ao mastro, se vai se soltar, se fica, se vai, ou se foi. Ele vai rir o riso
estúpido dos imbecis, numa apatia desapaixonada, independente do que aconteça.
As sereias
possuem uma arma ainda mais terrível do que seu canto: o silêncio.
(Fraz Kafka)