sexta-feira, 29 de novembro de 2013

A cura pela palavra: Buda

 
Os antigos classificavam os médicos como os que curavam com “a faca”, as ervas ou as palavras. Cirurgiões, clínicos e psiquiatras. Perguntam-me como pode, através da psicoterapia, a palavra curar. Vou ilustrar com exemplos.

Kisagohtami não se conformava com a morte de seu bebê. Como louca, perambulava pelos vilarejos carregando o cadáver de seu filho, acalentando-o como se estivesse vivo, procurando a “cura” para seu filho “doente”. Quando alguém dizia que ele estava morto, causava sua fúria, e ela ficava violenta. Assim, todos se afastavam dela e ninguém sabia o que fazer para ajudar a pobre delirante. Ela foi então levada a um iluminado, Buda. Este a recebeu, e com delicadeza, sem confrontá-la com o absurdo de seu pedido, disse calmamente que sabia como ajudá-la. Disse que para curar seu filho, precisaria de sementes de papoula. Pediu a ela que fosse até a cidade buscá-las, mas advertiu que as sementes deveriam vir apenas de casas de famílias que nunca tivessem sido tocadas pela morte. Kisagohtami foi à cidade, encontrou muitas casas, todas com papoulas, mas nenhuma nas condições pedidas por Buda. A morte atingia todas as casas. Retornou a ele e, diante de sua calma presença percebeu o significado secreto de suas palavras. Não é possível fugir da morte. Como despertando de um pesadelo, sua mente se recuperou, e ela pode então prantear a morte de seu filho e sepultá-lo.
Apenas com o poder da palavra, sem confrontação, sem imposição, ele conduziu gentilmente seu pensamento para fora do delírio, possibilitando a descoberta e aceitação do inevitável, não eliminando seu sofrimento, mas lidando com ele de maneira mais adequada. Recebeu a angústia da mulher, aceitou-a com empatia, e com uma abordagem não crítica nem onipotente, expandiu sua percepção da realidade. Para isso, não fez uso de remédios, orações ou danças. Sem precisar fazer uso de nada sobrenatural, levou a luz para onde havia trevas. Clareou o que estava no escuro. Esclareceu.

Dona Flor e seus dois maridos



Vadinho, o primeiro marido de Flor, lhe apresentou as delícias e dores do amor. Encantador para as mulheres, quase irresistível. Era charmoso, sensual, atrevido, sedutor e inconsequente. Mas também mulherengo e irresponsável. Com ele tudo era intenso. Bebia, jogava, tinha amantes.Não trabalhava, vivia na farra. Todos adoravam sua companhia. Não ligava para o futuro, só queria viver o aqui e agora.
Teodoro, o 2º marido de Flor, era o oposto. Honrado farmacêutico, homem trabalhador, culto e educado. Oferecia todas as seguranças que uma mulher pode querer, respeitabilidade social e fidelidade acima de qualquer suspeita. Mas não tinha graça nem encantava ninguém. Não perturbava os sonos de Flor, não despertava seus desejos. Era um chato.
Freud, em sua teoria estrutural da mente, descreveu o que chamou de Id, um reservatório inconsciente de energia e de pulsões, sempre ativas, regido pelo princípio do prazer, exigindo satisfação imediata desses impulsos, sem levar em conta a possibilidade de conseqüências indesejáveis. Jorge Amado o chamou de Vadinho.Freud chamou de superego o censor, um juiz rigoroso, vigia cruel e incansável, modelo de conduta, contendo os ideais derivados de valores familiares e sociais. Fonte de sentimentos de culpa e medo de punição. Corresponde, no romance a Teodoro.
Dona Flor sofria para conciliar os opostos. Protegia Vadinho, a quem desejava; de Teodoro, a quem respeitava. Precisava do calor de um e da segurança do outro. Ela corresponde ao Ego, funciona do em nível mais consciente, regido pelo princípio da realidade, procurando se equilibrar entre os outros dois, permitindo a realização parcial de desejos do id (Vadinho), mas sempre sob a rígida vigilância dos limites impostos pelo superego (Teodoro), num conflito permanente entre forças opostas, tentando conciliar o conflito. Ela personifica o drama constante de todos nós: o equilíbrio entre a realização dos desejos, conseguindo o máximo de prazer, com o mínimo de prejuízos.

O Silêncio de Cordélia



Goneril e Regane proclamam seu amor pelo rei, relatam sacrifícios que por ele fizeram, exibindo sua dedicação, pleiteando maior atenção paterna. Frente ao pedido do pai por provas de seu afeto,e diante de suas irmãs, Cordélia, a terceira filha do Rei Lear, pensa consigo mesma: “Cordélia, o que farás? Ama e te cala... por que seu amor é mais rico que sua língua”.A honrada Cordélia recusa a envolver-se na discussão hipócrita, com vistas ao lucro ante as riquezas do pai, sendo então excluída por ele de toda e qualquer parte de sua herança. O rei diz: “Nada virá de nada” (William Shakespeare,Rei Lear, ato1, cena1).
O erro trágico de Lear, que levará à cegueira, à loucura e, por final, à morte, está em não reconhecer que o silêncio pode incorporar em si os mais profundos e importantes significados. Tive o prazer e a honra de assistir ao inigualável Raul Cortez no papel de Rei Lear. E todo dia me deparo com situações que refletem essa mesma realidade. Aquilo que não é dito pelos pacientes, ou esquecido, ou desviado, muitas vezes tem mais importância do que aquilo que é repetido, às vezes até a exaustão. Da mesma forma como na vida nos deparamos com pessoas que dizem fazer e seus opostos, aqueles que fazem em silêncio. As palavras nos enganam mais do que os fatos, e o silêncio pode ser muito valioso.