Francesca (Meryl Streep, ganhando o Oscar por esta atuação)
é uma dona de casa comum, casada com um homem digno, que a respeita e com quem
tem dois filhos. Sua vida familiar é tranquila, funcional, sem grandes dramas. Rotina,
porém, que também é esmagadora e tediosa. Esta calmaria, aparentemente
previsível, prenuncia a chegada de uma tempestade. Algo está faltando. Eterno
insatisfeito, o ser humano, ao atingir uma aparente realização e estabilidade
(no caso, a meia-idade), volta seu olhar para dentro de si, sentindo-se descontente.
Francesca parece querer viver algo além do que a vida lhe oferece no momento. A
consciência, sempre se transformando e evoluindo, traz a necessidade de um
encontro mais profundo, que revelará o que há de mais sensível e secreto em sua
individualidade.
Platão, há 2.400 anos, já nos dizia que a verdade é
inatingível, algo que sempre está além. Quando imaginamos tê-la alcançado,
descobrimos que precisamos seguir adiante, numa busca sem fim, como chegar ao
horizonte, irrealizável. Em "O Banquete", ele nos conta que, no
passado, existiam os andróginos, seres completos, com dois gêneros, tanto
masculino, como feminino. Estes seres seriam tão completos, perfeitos e
felizes, a ponto de sua plenitude incomodar aos deuses, que sentindo-se
ameaçados por tamanha harmonia, levaram o maior dentre eles, Zeus, a partir os
andróginos em duas metades, separando-as para sempre. Os humanos seriam
descendentes desses andróginos mutilados, espalhados pelo mundo, todos ainda a
procura de sua "metade perdida". Quando nos apaixonamos, sentimos a
sensação maravilhosa de termos encontrado nosso "contrário", e nos
sentimos temporariamente completos, novamente felizes. Platão nos diz que isso
é uma ilusão, pois afirma que o objeto de amor sempre está ausente, ou seja,
"o que se ama é somente aquilo que não se tem".
Francesca, durante a ausência de sua família (por apenas
quatro dias), conhece o fotógrafo Robert Kincaid (Clint Eastwood), e por ele se
apaixona. Como ela mesmo revela depois em seu testamento, não se passou um
único dia desde então, em que ela não pensasse nele. Entregar-se a esta paixão
traz a estranha sensação de que ela não é mais dona de si mesma. Este homem faz
com que suas reações, pensamentos, esquemas rotineiros de lidar com a vida,
entrem em colapso. Ela passa pela descoberta de um "eu desconhecido",
alguém estranho dentro dela, que estava lá, adormecido, esperando para ser acordado
pelo outro. Passa a ter pensamentos com os quais não sabe o que fazer. Tudo o
que pensava ser verdade a seu respeito desaparece. Passa a agir como se fosse
outra pessoa e, no entanto, sentindo-se mais verdadeira do que nunca anteriormente.
A grande tragédia de seu adultério é a consciência de fazer algo contra alguém
que não o merece: seu marido traído é inocente.
Voltando a Platão. A busca de reparação do sofrimento
infligido pelos deuses, essa busca do paraíso perdido, após o pecado original,
através do amor irresistivelmente projetado no outro; como ensinou o filósofo,
se mostra impossível. Francesca se dá conta que o amor não obedece às nossas
expectativas, seu mistério é puro e absoluto. Ela percebe que o amor que vive
com Robert, não duraria se eles continuassem juntos. E o tanto que ela
compartilha com o marido, desapareceria se eles se separassem. A contradição
aparente é que, para que o amor dos amantes sobreviva, eles precisam se separar
("o que se ama, é aquilo que não se tem"). Sem saída, ela opta por
continuar casada, não nega o que sente por Robert, sofre e enfrenta. Diante da
necessidade de deixar para trás o que passou e enfrentar o que desponta, ela
sacrifica (torna sagrado) o presente (seu amor por Robert), preservando valores
imprescindíveis, como a criação dos filhos, a parceria de confiança e
generosidade que tem com o marido. A solução que ela encontra, a grande
síntese, consiste em reprimir o amor, permanecendo com a família. Apesar da
ausência daquele a quem ama, passa a viver com ele secretamente por toda a
vida, internalizado, na verdade mais profunda, como parte de sua alma, sua
metade perdida.
AUSÊNCIA
Por muito tempo achei que
ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje, não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada,
aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento
exclamações alegres,
porque a ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
(Carlos Drummond de Andrade)