Zilda era conhecida na família como uma mulher maravilhosa. Boa mãe, boa esposa, boa filha, boa cunhada. Com um profundo sentimento de família, ajudava a todos os parentes, sempre prestativa, não media sacrifícios pelo bem do próximo. Dona de casa exemplar, exímia cozinheira. Trabalhava também como voluntária na Igreja, ajudando os pobres. Patrocinava uma ONG que enviava alimentos para crianças africanas carentes. Reciclava o lixo. Edésio, seu orgulhoso marido, dizia com justiça, que Zilda era uma santa. Todos que a conheciam concordavam.
Até que num belo dia, Zilda leu um livro de auto-ajuda de uma psicóloga famosa, que estava na moda, aparecia em todos os programas da TV. Ficou impressionadíssima. Pensativa, releu não sei quantas vezes. No princípio, retraiu-se, ficou meio quieta, calada. Isolava-se de uma maneira inédita. De repente, inesperado, o pesadelo começa. Vai até Edésio e diz: -“Minha vida está toda errada!”. O marido, de bermuda estampada e chinelos, tomou um susto: -“Que brincadeira é essa?”. E ela: -“Brincadeira nada. Nunca falei tão sério na minha vida.”. O pobre homem, espantado, não conseguia entender: -“Deixa eu te ver, olha para mim...”. Examinou a face da esposa como se a visse pela primeira vez. Perguntou: -“Você está querendo dizer que é infeliz?”. Encarou-o, inflexível: -“Muito infeliz”.
A vida, de repente mudou. A casa não era mais a mesma. Zilda agora passava os dias choramingando, gemendo pelos cantos... –“Não sirvo para nada. A vida não presta, melhor morrer...”. O pobre marido não entendia patavina, nunca imaginara passar por aquilo. Perguntou: -“O que você quer que eu faça?”. Ela: -“Já estou cheia! Sai de perto de mim! Me deixa em paz!”. O impasse se instalou na família. Lembrava do livro da psicóloga famosa, onde lera que a mulher tem que ter vida própria. Que a mãe e a esposa vivem para os outros. Começou a dizer para o marido: -“Eu não vivo, quero ter vida própria!”. Daí para a falta de apetite foi um passo. Não via mais gosto em nada, cada vez mais amarga. Em desespero, Edésio contou a tragédia para um amigo que sugeriu: -“Leve-a ao psicanalista. É o jeito.”
Arranjaram um psicanalista. Na primeira sessão, Zilda deitou-se no divã, e o analista sentou-se de costas. Comandou: -“Pode falar”. E ela: -“Falar o quê?”. Ele: -“Não importa o quê. Fale.” Ela não abria a boca. O médico disse: -“Pode começar.” Ele estava com o relógio na mão, como a cronometrar. Após um tempo, levantou-se: -“Volte em dois dias, para continuarmos.” Ela: -“Mas eu não disse nada...” Ele esclarece: -“Sua hora terminou.” Durante duas semanas foi igual, a mesma cena, ela deitada, ele de costas, os dois em silencio. Então, ela achou que seu silencio estava custando muito caro e resolveu falar. Começou assim: -“Minha vida é uma novela...”, e não parou mais de falar. Falou por três anos seguidos, duas sessões por semana, falou sem parar, e sem ouvir qualquer resposta, opinião, ou parecer do médico. Falou que os filhos eram uma peste, que o marido era um fracassado, a sogra era uma bruxa, a família um bando de sanguessugas, os amigos, uns interesseiros. Reclamou da vida e das pessoas. Chorou várias vezes, ao contar seus infortúnios, como era incompreendida e injustiçada. O psicanalista, sempre de costas, em silencio perpétuo. Um dia, ela continuava sua interminável ladainha, quando ouve um som ou, para ser mais exato, um ronco. E pior: o ronco terminava num assovio. Levantou-se do divã, e constatou que o médico dormia. Ela maldizendo a vida, falando mal dos filhos, até do caçulinha... explicando detalhadamente todas as suas mazelas, suas tristezas, seus sofrimentos mais atrozes... e o analista dormindo. O mistério se revelara: o homem ficava de costas para dormir!
Furiosa, bate no ombro do médico. Diz: -“Doutor, doutor!”. Ele dá um pulo da cadeira: -“Quem é você?”. Pergunta: -“Não me conhece mais?”. Ele, atrás da mesa: -“O que você está fazendo aqui?”. Ela responde, surpresa: -“Sou sua cliente...” Os dois ficam se olhando, e ele começa a se lembrar: -“Minha cliente?” Quando enfim a reconhece, lhe dá uma bronca: -“Nunca mais faça isso. Não me acorde de repente. Sofro do coração. Posso morrer.” Zilda fica só olhando, mas quando ele diz: -“Pode ir”, ela não se aguenta: -“Eu aqui falando sozinha, bancando a palhaça enquanto você dorme e ronca? Meu marido é muito homem para lhe arrebentar a cara!”
O pior, ou o melhor, foi em casa, quando o marido chegou, lançou-se nos seus braços, quase o derrubando, ao mesmo tempo que soluçava: -“Você me perdoa, perdoa?”. Abraçou-se ao marido, escorregou pelo seu corpo. No seu arrependimento, beijava seus sapatos. Emocionados, os dois começaram a chorar. Foi lindo. Na hora do jantar, tomando sopa, ele quis saber: -“Meu coração, tiveste alta?”. Ela mente: -“O analista disse que já estou boa, não preciso mais”. No dia seguinte, Edésio dizia no trabalho: -“Sabe que a psicanálise resolve? Salvou meu casamento”. Piscava o olho: -“Dinheiro bem empregado”
(OBS- Esse texto é um plágio, em homenagem ao mestre Nelson Rodrigues, autor da idéia)
ahahhahahahha ótimoooooooooooooooooooooo texto!
ResponderExcluirAmei
ResponderExcluirAinda bem que é um plágio.
ResponderExcluirA função da psicanálise seria apenas conscientizar que a única opção que temos na vida é a escolha pelo menos ruim?
ResponderExcluirabraço...
Zito.
Juro! Aconteceu comigo a mesma situação constrangedora: lá estava eu, falando de mim quando, de repente, escuto a psicóloga roncando!!!
ResponderExcluirBom, o que eu posso dizer?
ResponderExcluirTem muita gente formada, que eu não sei porque escolheu essa profissão.
Ao procurarem um Psicoterapeuta, antes de tudo, avaliem se ele é alguém sério e que lhe transmite confiança, se tem alguma especialização, e principalmente, se a abordagem dele lhe agrada. Caso contrário, troque de profissional ;)
Este é um dos meus textos favoritos aqui no blog.
ResponderExcluirJá li por diversas vezes.
MUITO ENGRAÇADO !!!!
E até nos convida a uma boa e profunda reflexão, enfim...